O sonho com a transcendência da mente e o fascínio pelo
poder do rompimento com as barreiras impostas pelo corpo humano, sempre
acompanhou o Homem enquanto ser vivo consciente. O período do pós-modernismo,
recentemente atingido, marca a entrada de uma nova era onde conceitos como
corpo humano e a própria noção de existência e presença, se transformam em
objeto de transfiguração através da técnica. Levanta-se a questão: “o que é ser
humano no início do século XXI?”.
Em “Culturas e Artes do Pós-Humano”, Lúcia Santaella aposta
incisivamente no conceito de corpo cibernético como designação atribuível ao
fenómeno da requalificação, descodificação, reinterpretação, reformulação e
rejeição da própria dimensão carnal humana. O corpo, matéria-prima ao serviço
da ciência e das artes, assume múltiplas realidades. Segundo a autora, estas
poderão ser classificadas de acordo com as seguintes categorias:
1. O corpo remodelado
O culto da aparência conduz a estratégias de cuidado com o
corpo cujo caráter de invasão oscila entre a simples ginástica/musculação, até
um nível de reformulação dos traços físicos via cirurgia. É a “transformação do
corpo em mercadoria”, como um bem a estimar e adequar para próprio benefício
pessoal. A vertente do corpo remodelado quebra com o pressuposto da aceitação
das características físicas de nascimento e favorece a inconformidade para com
o defeito. O fator natural, caótico e imprevisível, é perdido em detrimento do
artificial, regrado e controlado em consciência.
2. O corpo protético
A prótese – o fruto da técnica como expansão artificial dos
limites de um corpo biológico, funciona aqui como substituto ou amplificador de
capacidades. O conceito de ciborg
(organismo cibernético) poder-se-á aplicar ao detentor da prótese. O termo
popularizado no cinema e na restante indústria de produção em ficção
científica, é na realidade de hoje mais do que vulgar. Com exceção do cérebro e
sistema nervoso, qualquer outro órgão tem um equivalente protético. Deste as
lentes de contacto ao pacemaker, dos pivots dentários aos membros superiores
controlados pelos próprios impulsos nervosos, a aplicação ubíqua da tecnologia no
corpo é cada vez maior.
3. O corpo esquadrinhado (rastreado)
Esta vertente marca a possibilidade de o Homem poder olhar
para o interior do corpo dele sem sequer o abrir. De um rastreio resultante de
uma ecografia, angiografia ou ressonância magnética, surge a imagem
matéria-prima passível de ser usada em análise ou como ponto de partida para
qualquer tipo de intervenção de caráter mais invasivo.
4. O corpo plugado (ligado)
Esta categoria define o fenómeno de projeção da consciência
no mundo cibernético, suscitando um gradiente de níveis de imersão consoante o
grau de cativação dos sentidos por parte do sistema. Ao ser suficientemente
estimulador, o utilizador abandona temporariamente a percepção sensorial do
real, substituindo-a pelo discernimento e absorção pautado por um mundo
virtual. Esse gradiente de imersão poderá ser caracterizado pelos seguintes
níveis de intensidade crescente:
- 4a) Imersão por conexão - Através dos sentidos da visão, audição, tacto, e respetivos periféricos de interface, o utilizador navega no ciberespaço retirando dele uma experiência de imersão superficial. O recurso à Internet ou a um outro produto interativo hipertextual, são bons exemplos deste conceito.
- 4b) Imersão através de avatares - Como resultado de uma personificação sob a forma de uma entidade gráfica virtual, o avatar funciona como a projeção do utilizador no ciberespaço, duplicando a sua identidade. Leva a que a consciência mental da presença e existência passe a oscilar em dualidade entre o corpo físico e o corpo imaterial.
- 4c) Imersão híbrida - Tipo de imersão explorada em performances e danças performativas, onde o corpo se integra, em tempo real, com elementos virtuais, interagindo com estes. Em palco, os dançarinos submetem o corpo como elemento ativo da produção cénica, controlando ou reagindo ao sistema que projeta nos artistas e em telas, elementos de arte computacional.
- 4d) Telepresença - Baseia-se no controlo de sistemas de robótica através da rede. O utilizador projeta a sua habilidade e presença numa entidade artificial física, intervindo no ambiente ao mesmo tempo que o percepciona através de sensores, câmaras e microfones instalados no local remoto. Um dos melhores exemplos deste fenómeno é quando o cirurgião opera um paciente localizado a milhares de quilómetros de distância. Os seus braços controlam diretamente os braços do robô e a sua visão é estimulada pela imagem da sala de operações.
- 4e) Ambientes virtuais - Neste caso de imersão profunda, a máquina procura iludir os sentidos do utilizador, evocando um mundo em redor dele que não é verdadeiro mas que reage à sua presença. O rigor da representação gráfica e o grau de latência na interação determinam o grau de responsividade do sistema, colaborando para uma maior abstração do utilizador e distância em relação ao mundo real.
5. O corpo simulado
Neste tipo, a autora refere-se à reprodução por via da
síntese de corpos humanos em espaços virtuais. O nível de detalhe pode passar
desde uma simples representação pictográfica de um ser humano num ambiente
digital, à elaboração de uma simulação análoga ao próprio funcionamento do
corpo físico para finalidades experimentais ou validação de hipóteses.
Adicionalmente, a estas entidades algorítmicas, poderá ser sobreposta uma
camada de inteligência artificial, no intuito de trabalhar comportamentos de
interação, reação e iniciativa, como um processo percursor do próprio conceito
de vida sintética.
6. O corpo digitalizado
Em oposição à síntese, a digitalização presume qualquer tipo
de captura do real para o mundo virtual. A submissão do virtualmente infinito
latente no analógico à crueldade das taxas de amostragem, é característica
deste processo. A autora associa este tipo ao projeto The visible human, onde dois cadáveres foram dissecados e
rastreados com recurso a diversas tecnologias de imagiologia, no sentido de ser
possível obter uma representação tridimensional fidedigna da anatomia humana. O
corpo humano torna-se posteriormente passível de ser montado, desmanchado e
analisado sem necessidade de interação direta com a matéria orgânica. Este
aspeto possibilita a disseminação da informação pela rede e em aplicações
informáticas, submetendo-a a um patamar de acesso sem comparação no panorama do
estudo da anatomia e ciências relacionadas.
7. O corpo molecular
7. O corpo molecular
A arte do corpo molecular assenta no aproveitamento da
tecnologia patente na bioengenharia e engenharia genética. Abre-se um mundo de
possibilidades na integração da arte na tecnologia, sob a forma de experiências
transgénicas que, de alguma forma, apresentem alguma produção de sentido
consciente, reflitam um determinado ponto de vista ou qualifiquem-se veículos
de mensagens.