Serve o presente blog para a coleção de pensamentos, reflexões, análises e resumos dos assuntos figurados no âmbito da avaliação da disciplina de Processos de Comunicação Digital, do doutoramento em Média-Arte Digital, da Universidade Aberta.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Corpo e Tecnologia


O sonho com a transcendência da mente e o fascínio pelo poder do rompimento com as barreiras impostas pelo corpo humano, sempre acompanhou o Homem enquanto ser vivo consciente. O período do pós-modernismo, recentemente atingido, marca a entrada de uma nova era onde conceitos como corpo humano e a própria noção de existência e presença, se transformam em objeto de transfiguração através da técnica. Levanta-se a questão: “o que é ser humano no início do século XXI?”.
Em “Culturas e Artes do Pós-Humano”, Lúcia Santaella aposta incisivamente no conceito de corpo cibernético como designação atribuível ao fenómeno da requalificação, descodificação, reinterpretação, reformulação e rejeição da própria dimensão carnal humana. O corpo, matéria-prima ao serviço da ciência e das artes, assume múltiplas realidades. Segundo a autora, estas poderão ser classificadas de acordo com as seguintes categorias:

1. O corpo remodelado

O culto da aparência conduz a estratégias de cuidado com o corpo cujo caráter de invasão oscila entre a simples ginástica/musculação, até um nível de reformulação dos traços físicos via cirurgia. É a “transformação do corpo em mercadoria”, como um bem a estimar e adequar para próprio benefício pessoal. A vertente do corpo remodelado quebra com o pressuposto da aceitação das características físicas de nascimento e favorece a inconformidade para com o defeito. O fator natural, caótico e imprevisível, é perdido em detrimento do artificial, regrado e controlado em consciência.

2. O corpo protético

A prótese – o fruto da técnica como expansão artificial dos limites de um corpo biológico, funciona aqui como substituto ou amplificador de capacidades. O conceito de ciborg (organismo cibernético) poder-se-á aplicar ao detentor da prótese. O termo popularizado no cinema e na restante indústria de produção em ficção científica, é na realidade de hoje mais do que vulgar. Com exceção do cérebro e sistema nervoso, qualquer outro órgão tem um equivalente protético. Deste as lentes de contacto ao pacemaker, dos pivots dentários aos membros superiores controlados pelos próprios impulsos nervosos, a aplicação ubíqua da tecnologia no corpo é cada vez maior.

3. O corpo esquadrinhado (rastreado)

Esta vertente marca a possibilidade de o Homem poder olhar para o interior do corpo dele sem sequer o abrir. De um rastreio resultante de uma ecografia, angiografia ou ressonância magnética, surge a imagem matéria-prima passível de ser usada em análise ou como ponto de partida para qualquer tipo de intervenção de caráter mais invasivo.

4. O corpo plugado (ligado)

Esta categoria define o fenómeno de projeção da consciência no mundo cibernético, suscitando um gradiente de níveis de imersão consoante o grau de cativação dos sentidos por parte do sistema. Ao ser suficientemente estimulador, o utilizador abandona temporariamente a percepção sensorial do real, substituindo-a pelo discernimento e absorção pautado por um mundo virtual. Esse gradiente de imersão poderá ser caracterizado pelos seguintes níveis de intensidade crescente:

  • 4a) Imersão por conexão - Através dos sentidos da visão, audição, tacto, e respetivos periféricos de interface, o utilizador navega no ciberespaço retirando dele uma experiência de imersão superficial. O recurso à Internet ou a um outro produto interativo hipertextual, são bons exemplos deste conceito.
  • 4b) Imersão através de avatares - Como resultado de uma personificação sob a forma de uma entidade gráfica virtual, o avatar funciona como a projeção do utilizador no ciberespaço, duplicando a sua identidade. Leva a que a consciência mental da presença e existência passe a oscilar em dualidade entre o corpo físico e o corpo imaterial.
  • 4c) Imersão híbrida - Tipo de imersão explorada em performances e danças performativas, onde o corpo se integra, em tempo real, com elementos virtuais, interagindo com estes. Em palco, os dançarinos submetem o corpo como elemento ativo da produção cénica, controlando ou reagindo ao sistema que projeta nos artistas e em telas, elementos de arte computacional.
  • 4d) Telepresença - Baseia-se no controlo de sistemas de robótica através da rede. O utilizador projeta a sua habilidade e presença numa entidade artificial física, intervindo no ambiente ao mesmo tempo que o percepciona através de sensores, câmaras e microfones instalados no local remoto. Um dos melhores exemplos deste fenómeno é quando o cirurgião opera um paciente localizado a milhares de quilómetros de distância. Os seus braços controlam diretamente os braços do robô e a sua visão é estimulada pela imagem da sala de operações.
  • 4e) Ambientes virtuais - Neste caso de imersão profunda, a máquina procura iludir os sentidos do utilizador, evocando um mundo em redor dele que não é verdadeiro mas que reage à sua presença. O rigor da representação gráfica e o grau de latência na interação determinam o grau de responsividade do sistema, colaborando para uma maior abstração do utilizador e distância em relação ao mundo real.

5. O corpo simulado

Neste tipo, a autora refere-se à reprodução por via da síntese de corpos humanos em espaços virtuais. O nível de detalhe pode passar desde uma simples representação pictográfica de um ser humano num ambiente digital, à elaboração de uma simulação análoga ao próprio funcionamento do corpo físico para finalidades experimentais ou validação de hipóteses. Adicionalmente, a estas entidades algorítmicas, poderá ser sobreposta uma camada de inteligência artificial, no intuito de trabalhar comportamentos de interação, reação e iniciativa, como um processo percursor do próprio conceito de vida sintética.

6. O corpo digitalizado

Em oposição à síntese, a digitalização presume qualquer tipo de captura do real para o mundo virtual. A submissão do virtualmente infinito latente no analógico à crueldade das taxas de amostragem, é característica deste processo. A autora associa este tipo ao projeto The visible human, onde dois cadáveres foram dissecados e rastreados com recurso a diversas tecnologias de imagiologia, no sentido de ser possível obter uma representação tridimensional fidedigna da anatomia humana. O corpo humano torna-se posteriormente passível de ser montado, desmanchado e analisado sem necessidade de interação direta com a matéria orgânica. Este aspeto possibilita a disseminação da informação pela rede e em aplicações informáticas, submetendo-a a um patamar de acesso sem comparação no panorama do estudo da anatomia e ciências relacionadas.

7. O corpo molecular

A arte do corpo molecular assenta no aproveitamento da tecnologia patente na bioengenharia e engenharia genética. Abre-se um mundo de possibilidades na integração da arte na tecnologia, sob a forma de experiências transgénicas que, de alguma forma, apresentem alguma produção de sentido consciente, reflitam um determinado ponto de vista ou qualifiquem-se veículos de mensagens.